2007-05-14
A dez, segundo Henrique Fialho

 

"Era suposto o n.º 10 da revista aguasfurtadas ter saído em Outubro de 2006 (data de edição), mas por atrasos não explicados acabou por vir à luz apenas em Março passado. Cinco meses é uma pipa de tempo, mais ainda para uma revista de cultura, sem distribuidor, dependente do bom esforço de quem a faz e da boa vontade de quem lhe põe a mão. Diz a canção que «quem faz um filho, fá-lo por gosto». Como se costuma também dizer dos bebés retardados, este filho, que dá gosto ver, foi mais calão do que os anteriores, mas nem por isso lhes fica atrás. E isso é o que importa salientar. De entre as diversificadas matérias, que incluem um excelente leque de fotografias e ilustrações, quero destacar a Antologia Brevíssima de Angélica Freitas, um breve conjunto de poemas de Gez Walsh, traduzidos por Helder Moura Pereira, um conto de António Gregório e um ensaio de Manuel António Pina. Já lá irei. Antes, porém, impõe-se que parabenizemos os mentores deste projecto pelos sete anos, número mágico, e pelo décimo número, o mais sagrado dos números para os antigos Pitagóricos. Olhando apenas para o índice (...) é fácil constatar da singularidade deste objecto, não só pelo já costumeiro CD - «imagem de marca da revista» - mas, principalmente, pela salutar multiplicidade de conteúdos. Em que outro volume uma biografia do compositor Carlos Seixas pode amenamente confraternizar com as ilustrações provocadoras de uma tal Christina Casnellie? É verdade que há nisto tudo uma postura algo arty, justificada por um extremo bom gosto e pela inquestionável qualidade da maioria das propostas – sejam elas nas esferas da poesia, tradução, conto, ensaio, música, banda desenhada, entre outros. Na poesia, por exemplo, é uma agradável surpresa a Antologia Brevíssima da poeta brasileira Angélica Freitas (n. 1973), nome muito recente de uma poesia vastíssima, mas com um domínio seguro do campo em que se movimenta. Na introdução, de Ricardo Domeneck, fala-se de uma «poeta anti-autoritária por excelência, e para isso desbanca qualquer impostura literária que tente hierarquizar a posição do poeta diante de seus leitores». Nós por cá temos Adília Lopes, com quem Angélica mantém, digamos assim, "angelicais" relações estilísticas. Ainda assim, é uma proposta muito a ter em conta, como atesta o pequeno poema aqui deixado. Surpreendentes são os poemas de Gez Walsh, autor que desconhecia em absoluto, traduzidos pelo poeta Helder Moura Pereira. Reza a história que Walsh terá começado a escrever com a intenção de encorajar para a leitura o seu filho disléxico. Em 1997 reuniu os seus poemas sob o título The Spot on my Bum (A Borbulha no Rabo), extraordinário sucesso de vendas a rondar as 60,000 cópias! O esforço de Gez Walsh resulta numa divertida e cómica linguagem poética, a sondar a pequena estória, de contornos surrealistas-abjeccionistas. A título de exemplo, este Podar o avô: «O avô estava a dormir / na sua cadeira de embalar, / quando reparei que lhe saía do nariz / um enorme pêlo preto, já a encaracolar. / O pobre velhote dormia que dava gosto ver / e eu aproximei-me devagar sem ele saber. / Estava com a boca aberta, / a cara sem nenhuma expressão, / eu cheguei-me perto do pêlo / e arranquei-o com um esticão. / O avô acordou com um grito, / logo ao nariz se agarrou. / Quando a dor lhe chegou ao corpo, / todo ele se eriçou. / E o avô gritou: “Que raio / estás tu a fazer?” / Eu disse: “Não é nada, estou só a podar o avô!”» (p. 48). Outro sucesso de vendas extraordinário é o clássico Winnie-the-Pooh, de Alan Alexander Milne (n. 1882 – m. 1956), dissecado pelo poeta Manuel António Pina em conferência proferida no ano de 2003, agora trazida à página neste número da aguasfurtadas. O texto de Manuel António Pina (n. 1943) é, como outra coisa não seria de esperar, muito bom, discorrendo, sempre num tom aberto, sobre as várias facetas deste clássico vindo a lume em 1926. Agradou-me sobremaneira a seguinte cogitação sobre a linguagem infantil: «a palavra, na infância, se é uma aprendizagem da razão, é também uma experiência mágica de convocação imediata do mundo. Daí que a linguagem infantil tão facilmente seja poética. Ou exprima a inadequação e a confusão dos sentidos (e dos sentimentos) em confronto com a organização da razão adulta» (p. 102). E se há histórias infantis para adultos ele há também histórias adultas para adultos numa linguagem quase infantil. Quem frequente o Diário Dócil, weblog de António Gregório (n. 1970), saberá do que estou a falar. O conto A Perseguição é um bom exemplo dessa linguagem algo descomprometida, entre a razão e a confusão dos sentidos, que nos permite pensar, por exemplo, em qual seja «o groove das torradas» em cafés onde se servem «comboios de cimbalinos». Excelente conto de um autor leiriense que dá gosto ler, assim como quem faz um filho. Ou algo parecido."

Henrique Fialho

furtado por Rui Manuel Amaral | 08:55

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Poemas de Angélica Freitas (com introdução de Ricardo Domeneck), Rogério Rôla (com introdução de Margarida Vale de Gato), Vítor Oliveira Jorge, Pedro Amaral, Gez Walsh (com tradução de Hélder Moura Pereira), Stéphane Mallarmé (com tradução de Manuel Resende) e William Shakespeare (com tradução de Manuel Resende).
Contos de António Gregório e Luís Graça.
Ensaios de Manuel António Pina, Tiago Bartolomeu Costa, Samuel Silva e João Pedro d'Alvarenga.
E ainda um texto de Óssip Mandelstam, com tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.
Ilustrações de Arff, Ana Justo, João Marçal, Francisco Cruz, Pedro Augusto, Scotch, Ana Xé Ribeiro e Agostinho Santos (com texto introdutório de André Sousa Martins).
Fotografias de Ângelo Fernandes, António Vieira, Filipe Silva, Luís Duarte, Hélio Mateus, Sofia Serrão e Fátima Séneca.
Bd de Jorge Soares.
Partituras de Ângela Ponte, Nuno Estrela e Nuno Peixoto de Pinho.
CD áudio com obras de Ângela Ponte, Nuno Estrela, Nuno Peixoto de Pinho, Carla Oliveira, Fátima Fonte e Gustavo Costa.


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